11 de jun. de 2010

A volta dos misteriosos neutrinos

Folha de S. Paulo

São Paulo, domingo, 06 de junho de 2010
MARCELO GLEISER  - ciencia@uol.com.br
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Imagine que um sorvete de chocolate se transforme em um de baunilha: há partículas que fazem isso.
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NA SEMANA PASSADA, manchetes traziam novas dos fantasmagóricos neutrinos.
Desta vez, as notícias vinham do experimento chamado Opera, situado na montanha de Gran Sasso, na Itália. Cientistas anunciaram ter presenciado a mutação de um neutrino do tipo múon em outro do tipo tau.
Esta afirmação um tanto misteriosa pode abrir uma nova janela para o Universo.
Neutrinos têm uma história cercada de mistério. Sua existência foi prevista pelo físico Wolfgang Pauli em 1930 para solucionar um grave problema: experimentos com núcleos radioativos que emitiam elétrons pareciam ter energia faltando. E nada é mais sagrado em física do que a lei de conservação de energia.
O italiano Enrico Fermi sugeriu o nome de neutrino, "picollo neutrone", para a nova partícula que, segundo a teoria, não deveria ter carga elétrica ou massa. Devido à ausência de carga e massa, não é nada fácil detectar neutrinos. De fato, foram descobertos apenas em 1956, 26 anos após a previsão de Pauli.
Mas as coisas não eram assim tão simples. Entre a década de 1960 e 2000, mais uma vez neutrinos causavam confusão. A estória começa no coração do Sol, onde neutrinos são produzidos em profusão a cada vez que processos nucleares fundem núcleos de hidrogênio (i.e., prótons) em núcleos de hélio. Nossa estrela-mãe é uma gigantesca fábrica de neutrinos. A cada segundo, cada um de nós é bombardeado por trilhões deles. Há muitos modos de perceber nossa relação com o Sol...
O problema era que experimentos projetados para "contar" os neutrinos vindos do Sol achavam apenas um terço deles. Será que as teorias de como o Sol brilha estavam erradas? Ou eram os experimentos? Ray Davis, físico experimental, insistia que tudo estava certo. John Bahcal, teórico, também não via erros em sua teoria. Com o tempo, ficou claro que os experimentos estavam certos. O problema, outra vez, eram os neutrinos e seu comportamento bizarro.
Imagine que o sabor de seu sorvete possa mudar de morango para baunilha ou chocolate. Os neutrinos são assim. Eles vêm em três "sabores": o neutrino do elétron, o do múon e o do tau. Múons e taus são partículas similares ao elétron, mas mais pesadas. O interessante é que essa metamorfose só pode ocorrer se os neutrinos têm massa! Portanto, a razão pela qual Davis achou só um terço dos neutrinos é que, do Sol até aqui, os neutrinos do elétron se transformam nos outros dois. Sua descoberta lhe rendeu um Nobel.
Isso remete ao resultado do Opera. Ao observar a metamorfose de um neutrino do múon a um neutrino do tau, físicos confirmaram que eles têm massa. Isso significa que o Modelo Padrão das partículas, repositório de tudo o que sabemos do mundo subatômico, tem de ser modificado: mais uma vez, neutrinos revelaram uma nova física, além da que conhecemos no momento. Resta saber que nova física será esta.
Com frequência na história, novos instrumentos abrem novas janelas para o cosmo, iluminando um pouco da escuridão que nos cerca.
Tal como as pequenas flutuações de energia detectadas quando neutrinos mudam de tipo, cada nova descoberta nos permite ver um pouco além. A ciência é como uma luz nas trevas, como dizia Carl Sagan.
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MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita".

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