25 de ago. de 2010

Má conduta científica dispara nos EUA

FOLHA DE SÃO PAULO - Quarta-feira, 18/08/2010


Em 16 anos, denúncias de fraude aumentaram 161%; país gastou US$ 110 mi para investigar 217 casos em 2009

De cada três acusados, um é punido; pressão por produção e briga por cargos e dinheiro induz desvios, diz cientista

 
RICARDO MIOTO
DE SÃO PAULO

Há cada vez mais sujeira por baixo dos jalecos brancos: nunca antes os Estados Unidos, grande potência científica mundial e pioneiro na tentativa de coibir fraudes nos laboratórios, teve tantos problemas com desvios de conduta de pesquisadores.

Casos como o de Marc Hauser, biólogo afastado de Harvard há uma semana acusado de distorcer dados em uma pesquisa sobre aprendizado em pequenos macacos, quase triplicaram nos últimos 16 anos.

Em 1993, quando o governo federal dos EUA criou uma agência para o assunto, a ORI (Agência para a Integridade em Pesquisa, na sigla em inglês), foram relatadas 86 denúncias de desvios.

Em 2009, foram 217, número recorde. O país gastou cerca de US$ 110 milhões investigando esses casos. Historicamente, um terço das investigações resulta em punição -em geral, afastamento de cargos e verbas públicas.

O número foi apresentado pela equipe de Arthur Michalek, biólogo do Instituto Roswell Park (de Nova York), na edição de ontem da revista científica "PLoS Medicine".

"Humanos são humanos, alguns vão se deixar seduzir e usar certos atalhos em busca do sucesso, por mais antiéticos que eles sejam", disse à Folha. "A esmagadora maioria dos cientistas são éticos. Infelizmente, trapaças de poucos mancham o trabalho duro do resto de nós".

Humanos sempre foram humanos, claro, e fraudes existem desde sempre.

O homem de Piltdown é citado com frequência como a maior mentira da história da ciência, e o caso é de 1908.

Na época, foram apresentados fósseis de um suposto elo perdido entre humanos e primatas. Só em 1953 a fraude foi comprovada: tratava-se, na verdade, de uma mistura deliberada de ossos humanos e de orangotango.

Os números americanos, porém, mostram a má conduta ganhando espaço.

Para Sílvio Salinas, 67, físico da USP, a tentação é maior entre as gerações mais novas. "Hoje em dia, há uma enorme pressão, uma grande disputa por posições", diz. "Mas os bárbaros não tomaram conta da ciência ainda."

SAIBA MAIS

Casos no Brasil envolveram alto escalão da USP

DE SÃO PAULO

O Brasil foi eficiente criando comitês de ética (há 592 ligados à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep), mas eles atuam principalmente aprovando estudos com voluntários e cobaias.

No que se refere às fraudes, a situação é diferente. Dois casos impunes de plágio se destacaram nos últimos anos, ambos envolvendo o alto escalão da USP.

Em 2009, a reitora Suely Vilela foi denunciada por ser coautora de um trabalho que utilizava figuras de um estudo de 2003 da UFRJ. Não houve punição.

O outro caso, de 2007, envolveu o diretor do Instituto de Física, Alejandro Szanto de Toledo, e Nelson Carlin Filho, vice-diretor da Fuvest. Eles publicaram um artigo que tinha parágrafos inteiros copiados de trabalho anterior de um colega.

Em 2008, a reitoria, sob a própria Vilela, fez uma "moção de censura" a ambos. "No começo, até achei que haveria punição concreta", diz Sílvio Salinas, da USP. Para ele, há muita diferença entre Brasil e EUA.

"Lá, mesmo as revisões feitas nos estudos antes da publicação são mais sérias. Aqui parece que o pessoal quer se livrar logo." Não há grandes trabalhos sobre a dimensão das fraudes científicas no país, nem sobre seu custo. (RM)


Cresce a fraude em ciência - e no Brasil?

Por Marcelo Leite

Preste atenção neste assunto: fraudes em pesquisas científicas. Elas estão aumentando e vão continuar assim, dada a competição feroz por reputação e verbas nesse campo da criatividade humana.

Nada menos que 72% dos pesquisadores incluídos numa revisão ampla de 2009 afirmam já ter presenciado algum tipo de má conduta. As falcatruas vão de pecados veniais, como a inclusão honorária de autores que não participaram de um estudo, a pecados capitais, como falsificar ou fabricar dados.

Nas faculdades de medicina brasileiras, por exemplo, é prática comum pôr o nome do chefe da cadeira entre as assinaturas de um artigo científico, mesmo que ele não tenha noção do que vai escrito ali. Há quem defenda a aberração, argumentando que o fulano criou as condições para que a pesquisa fosse realizada.

Sendo assim, por que não incluir também o nome do reitor em todos os estudos realizados numa universidade? Antes que algum reitor ou bajulador afoito se encante com a ideia, aviso que se trata de um argumento por absurdo.

Reconhecimento honesto da autoria de trabalhos originais é um dos pilares da ciência. Fidelidade na descrição dos métodos e dados é outro, pois é crucial poder reproduzir observações e experimentos. Por toda parte há quem se disponha, no entanto, a marretar os pilares do edifício.

Não deve ser por acaso que se realizou em Cingapura, de 21 a 24 de julho, a Segunda Conferência Mundial sobre Integridade em Pesquisa. O evento lançou para discussão aberta na internet o documento "Singapore Statement" (Manifesto de Cingapura), que lista 13 princípios e dá a seguinte definição de integridade científica:

"Integridade em pesquisa é definida como a confiabilidade da investigação por força da solidez de seus métodos e da honestidade e precisão na sua apresentação. Falta integridade à pesquisa quando seus métodos ou apresentação distorcem ou deturpam a verdade".

O caso mais rumoroso em andamento é o de Marc Hauser, célebre pesquisador da Universidade Harvard no campo da psicologia evolucionista (novo nome da polêmica área da sociobiologia, surgida nos anos 1970). Hauser é o autor de influentes trabalhos - inclusive experimentos com macacos - sobre a origem de comportamentos morais na evolução darwiniana por seleção natural.

O raciocínio básico da psicologia evolucionista afirma que, se algo existe hoje, é porque foi selecionado no passado por conferir vantagem adaptativa. Coisas como senso de justiça e altruísmo teriam sido úteis para a sobrevivência de indivíduos ou espécies primatas, em priscas eras, e por isso teriam sobrevivido (possivelmente "codificadas" no DNA da espécie). Há quem conclua daí que as pessoas são boas ou más por causa de seus genes, o que ajuda a entender a popularidade desses estudos.

Hauser é um pouco mais sofisticado. Seu livro "Moral Minds", de 2006, teve boa repercussão. A qualidade de alguns de seus trabalhos científicos, porém, começou a ser investigada há pelo menos um ano por Harvard, noticiaram os jornais "Boston Globe" e"The New York Times".

A imprensa brasileira aparentemente ignorou a péssima notícia. Se quiser ler algo em português, dirija-se ao diário luso "Expresso".

Tratei do assunto em comentário no blog Ciência em Dia, quarta-feira passada, no qual concluí, talvez indevidamente, que Harvard o havia afastado. Não está claro ainda, mas parece que Hauser se afastou voluntariamente, a julgar pela resposta automática para mensagens de e-mail em que afirma estar em licença e trabalhando furiosamente na conclusão de um livro, "Evilicious: Why We Evolved a Taste for Being Bad" (Por que Evoluímos para o Gosto de Sermos Maus), segundo se pode ler em reportagem do jornal"Harvard Crimson", que voltou a tratar do assunto aqui.

Alguns trabalhos do grupo de Hauser em periódicos já estão sendo retirados (cancelados), por desacordo entre dados e conclusões, mas não se conhecem detalhes. Nem Hauser, nem seus alunos, nem a universidade estão dando entrevistas sobre a investigação.

Pode ser uma maneira de preservar a reputação pessoal de Hauser, claro. Se for isso, mesmo, reforçaria a hipótese de que os erros (ou fraudes) sejam menores, ou cometidos sem seu conhecimento por um integrante júnior da equipe.

O galho é que, sem esses esclarecimentos, toda a obra de Hauser e de seus colaboradores fica sob suspeita. Não dá para saber se houve uma falha localizada de supervisão, ou uma prática corrente em seu laboratório. O silêncio de Harvard só contribui para turvar ainda mais as águas.

A Escola Médica de Harvard pelo menos criou um Escritório de Integridade Científica. Agora tente encontrar na página da Faculdade de Medicina da USP, a mais prestigiada do país, algo similar a isso --se existe, não se encontra com muita facilidade.

Alguém duvidaria, em sã consciência, que fraudes científicas vão de vento em popa também no Brasil?










MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço.

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