26 de fev. de 2015

Aglomerados de galáxias crescem engolindo uns aos outros

Agrupamentos de galáxias é a especialidade de dois pesquisadores da da Universidade de São Paulo (USP), Gastão Lima Neto, e seu colega, o pós-doutorando Rubens Machado, que trabalha em simulações astronômica. Todo connoisseur sabe que, para apreciar melhor os aromas de um bom vinho, é preciso balançar de forma circular a taça antes de levá-la ao nariz. Sabe também que se fizer o gesto com muita força as ondas na superfície do líquido provocadas pelo giro – que ajudam a liberar o cheiro do vinho no ar – podem crescer até transbordarem da taça.

Observações astronômicas sugeriam que um fenômeno muito parecido com o transbordar de um líquido provocado pelo movimento giratório de seu recipiente teria acontecido em escala cósmica há bilhões de anos no aglomerado de galáxias Abell 2052. Parte do gás acumulado no centro desse conjunto de centenas de galáxias a 480 milhões de anos-luz de distância da Terra teria sido chacoalhado até espirrar para a periferia do aglomerado criando uma cauda de gás de formato espiral que se estende pelo amplo espaço entre as galáxias por mais de 800 mil anos-luz (cerca de oito vezes o comprimento da galáxia onde o Sol se encontra, a Via Láctea). Um estudo feito por Machado e Lima Neto, cujos resultados serão publicados na edição de março da Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, é o primeiro a explicar, por meio de simulações em computador, o transbordamento de gás para a espiral observada no aglomerado Abell 2052. “Os pesquisadores supunham esse mecanismo, mas ninguém havia feito cálculos para verificar”, diz Machado.

As novas simulações sugerem que, cerca de 2 bilhões de anos atrás um grupo pequeno de galáxias, com poucas dezenas delas, viajando pelo espaço com uma velocidade de mil quilômetros por segundo, atravessou a periferia do aglomerado Abell 2052, a cerca de 6 milhões de anos-luz de seu centro. Logo o pequeno grupo de passagem teria sido atraído pela enorme força gravitacional do aglomerado maior e suas galáxias começaram a girar em torno do centro do Abell 2052. Mas, como mandam as leis do movimento, toda ação tem a sua reação. De acordo com Machado, a passagem do pequeno grupo ao redor do aglomerado pôs o centro do Abell 2052 para chacoalhar. “A perturbação gravitacional do grupo pequeno puxou o aglomerado para um lado e depois para outro”, explica. “O gás que estava parado no centro do aglomerado começou a oscilar e acabou transbordando para fora.”



Machado e Lima Neto compararam os resultados de suas simulações com imagens de galáxias próximas ao aglomerado e conseguiram identificar outro grupo de galáxias na sua periferia que pode muito bem ser o causador do transbordamento. Essas galáxias têm a mesma posição e a massa total que o grupo que, segundo as simulações, teria posto o Abell 2052 para chacoalhar há 2 bilhões de anos.

O pequeno ajuntamento de galáxias tem uma massa total 10 trilhões de vezes maior que a massa do Sol (10 trilhões de quilogramas). A massa total do aglomerado Abell 2052 é 100 vezes maior: mil trilhões de massas solares. Mais assustador, porém, é saber que todas as centenas de galáxias do aglomerado, cada uma com bilhões de estrelas, somam apenas 3% da massa total do aglomerado. “Curiosamente, as galáxias são apenas um detalhe dos aglomerados, um detalhe que inclusive podemos ignorar tranquilamente nas simulações”, diz Machado.

A maior parte da massa dos aglomerados de galáxias, 82% dela, é o que se chama de matéria escura, cuja natureza ainda é completamente desconhecida pelos físicos. Os 15% restantes da massa dos aglomerados de galáxias estão na forma de gás normal espalhado pelo amplo espaço de milhões de anos-luz entre as galáxias. Esse gás é constituído principalmente de átomos de hidrogênio ionizados. Apesar de muito rarefeito, é mais quente que o núcleo do Sol e emite raios X de alta energia que são captados aqui na Terra por telescópios espaciais. Lima Neto compara a observação desse gás quente com uma radiografia médica. Observando onde há mais ou menos raios X dentro de um aglomerado galáctico, é possível fazer um diagnóstico de sua história, como foi o caso da espiral de raios X observada pelo telescópio Chandra no aglomerado Abell 2052.

O aglomerado tem esse nome por pertencer ao chamado Catálogo Abell, uma lista de mais de 4 mil aglomerados de galáxias que começou a ser compilada pelo astrônomo norte-americano George Abell, em 1958. Hoje os astrônomos sabem que esses conjuntos de centenas a milhares de galáxias se formaram por meio da fusão de aglomerados menores que colidem entre si ao longo de bilhões de anos. “São poucos os aglomerados que observamos durante o ato de colidir”, explica Machado. “Mesmo assim, há muitos aglomerados com sinais de que sofreram colisões; o objetivo das simulações é reconstituir como eles ficaram desse jeito.”

Colisão espetacular

Rubens Machado e Lima Neto decidiram fazer o trabalho com o Abell 2052 depois do sucesso que tiveram ao simular uma colisão ainda mais espetacular, que deu origem ao aglomerado Abell 3376. De massa e tamanhos semelhantes ao do Abell 2052, o 3376 está a 614 milhões de anos-luz de distância da Terra. Lima Neto participou de uma equipe internacional de astrônomos que publicou em 2006 na revista Science observações do Abell 3376, comprovando que elétrons no espaço em volta do aglomerado emitem ondas de rádio, em razão da energia que ganharam de ondas de choque geradas pela colisão entre dois aglomerados menores, que se fundiram para formar um maior. Nesse mesmo artigo, os astrônomos mostraram que o gás quente emissor de raios X no interior do aglomerado Abell 3376 se concentra em uma região com formato de arco, lembrando um cometa.


Simulações que a dupla publicou em 2013 no Monthly Notices of the Royal Astronomical Society sugerem que o Abell 3376 é produto da colisão de dois aglomerados que aconteceu meio bilhão de anos atrás. Um aglomerado grande foi atingido de frente por um menor, com cerca de um sexto da massa do Abell 3376 atual. O aglomerado menor penetrou o maior e o está atravessando até hoje, a uma velocidade de 2,6 mil quilômetros por segundo. Machado explica que essa velocidade é quatro vezes maior que a velocidade do som no gás do aglomerado. A velocidade supersônica da colisão é a causa do arco comentário observado em 2006.

Para o estudo do Abell 3376, Machado avaliou mais de 200 simulações, cada uma reconstituindo 3 bilhões de anos da história do aglomerado de uma maneira diferente. Cada simulação demorava 12 horas para ser calculada. Um único computador comum demoraria 16 anos para concluir o estudo. No entanto, ele foi feito em apenas três meses utilizando o Alphacrucis, um cluster com 2.304 processadores instalado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, em 2012.

A grande dificuldade de simular em computador a força da gravidade da matéria escura e do gás quente dos aglomerados é que a perda de energia pela emissão de raios X apaga parte da informação sobre o passado do aglomerado. “Não há critério matemático para explorar todos os cenários possíveis”, explica Machado. “Nós propusemos histórias detalhadas e fisicamente plausíveis, mas não temos como garantir que as soluções encontradas sejam únicas.” 

“Esse é o ponto fraco das simulações”, comenta o astrônomo Renato Dupke, do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, que observa colisões entre aglomerados de galáxias. Ele nota que o que se vê atualmente é uma projeção do aglomerado no céu. “É a projeção bidimensional de um objeto tridimensional, o que dificulta saber o que está acontecendo na linha de visada. Além disso, algumas propriedades do aglomerado são medidas indiretamente. Assim, podem haver várias soluções para o mesmo problema e uma análise posterior é necessária para se escolher a melhor solução.” 

É o que Lima Neto e Machado fizeram em janeiro do ano passado, quando observaram o aglomerado Abell 3376 com o Telescópio Blanco do Observatório Inter-americano em Cerro Tololo, no Chile. Os dados de suas observações ainda não foram analisados, mas o que esperam é que a distribuição de matéria escura do aglomerado, ainda desconhecida, bata com a previsão de suas simulações. “Estamos na expectativa”, conta Machado. “De qualquer jeito, vamos publicar um novo artigo em breve a respeito.” 

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