18 de nov. de 2011

Por que Urano gira de lado?


Um dos grandes problemas em aberto da astronomia do Sistema Solar pode ter sido resolvido, finalmente, por uma equipe internacional de cinco pesquisadores, incluindo um brasileiro. Por meio de simulações computacionais, o time liderado pelo italiano Alessandro Morbidelli, do Observatório de la Côte d'Azur, em Nice, na França, obteve indícios de que a inclinação anômala do eixo de rotação de Urano não se deve a apenas uma grande colisão com um corpo do tamanho da Terra, como se pensava, mas sim a dois choques com objetos de porte significativo. O planeta gira sob um eixo cuja inclinação é de 97,7 graus em relação ao plano de sua órbita em torno do Sol.

As duas trombadas teriam ocorrido em momentos distintos do processo de nascimento de Urano, um gigante de gás e gelo, vinte vezes mais distante do Sol do que da Terra. "Elas explicariam por que Urano gira deitado em relação a seu plano orbital", diz o astrônomo Rodney Gomes, do Observatório Nacional (ON/MCTI), no Rio de Janeiro, que participou do estudo. A nova hipótese foi apresentada em outubro no Congresso Europeu de Ciência Planetária, em Nantes, na França, e pode mudar a visão que se tinha da primeira fase da formação do Sistema Solar.


Urano, seus anéis e luas em imagem capturada pelo telescópio espacial Hubble. O eixo de rotação do planeta aponta para a esquerda e seu plano orbital situa-se na direção horizontal.

Os planetas começaram a se formar há 4,5 bilhões de anos, a partir de um disco de gás e poeira girando em torno do Sol. Durante seus primeiros milhões de anos, o material do disco foi se aglutinando, formando corpos cada vez maiores de proporções semelhantes a dos asteroides e cometas, os chamados planetesimais. Por meio de colisões entre si, os planetesimais continuaram a crescer, até formarem embriões planetários — corpos com dimensões semelhantes aos planetas atuais. Alguns desses embriões capturaram rapidamente o gás do disco, que se dissipou nos primeiros milhões de anos, formando os planetas gigantes gasosos (Júpiter, Saturno) e de gelo (Urano e Netuno), que contêm uma quantidade de gás bem menor que aqueles. Os embriões, no Sistema Solar interno, continuaram a colidir entre si até formarem os atuais planetas rochosos (Mercúrio, Vênus, Terra e Marte).

Esse cenário implica que todos os planetas nasceram orbitando no plano desse disco primordial, com o eixo de rotação em torno de si perpendicular a esse plano. Encontros posteriores entre planetas, planetesimais e embriões planetários restantes, porém, teriam desviado seus eixos dessa norma. O eixo de rotação da Terra, por exemplo, é inclinado cerca de 23 graus em relação ao seu plano orbital. Já Urano é um caso extremo, com uma inclinação de quase 98 graus. Isso faz com que seus polos norte e sul se situem nos lados da esfera planetária em vez de em cima e embaixo.

Desde os anos 1960, os cientistas acreditam que essa obliquidade acentuada seria fruto de um choque violento entre Urano e um grande embrião planetário. Mas sempre houve um problema com essa explicação: as dezenas de luas e anéis de Urano também giram de lado, em torno do eixo de rotação extremamente inclinado do planeta. Durante uma colisão abrupta, dizem os críticos dessa hipótese, não haveria tempo para que esses anéis e satélites tivessem acompanhado Urano em sua inclinação. Eles deveriam ter permanecido num plano orbital menos angulado.

Para explicar essa discrepância, os astrofísicos Gwenaël Boué e Jacques Laskar, do Observatório de Paris, propuseram em 2009, uma teoria alternativa, diferente da que agora foi apresentada por Gomes e seus colegas. Segundo a dupla francesa, Urano teria tido no passado uma lua enorme, do tamanho da Terra. A presença do satélite massivo teria feito com que o movimento de precessão do eixo de rotação do planeta, semelhante à oscilação produzida por um pião girando, se ampliasse ao poucos de tal forma que esta velocidade de rotação coincidisse com a velocidade de precessão do plano orbital de Urano em torno de um plano de referência, acarretando um efeito ressonante que faria com que o eixo de rotação de Urano fosse lentamente "deitando" o planeta. Essa inclinação seria um processo tão gradual que os anéis e demais satélites acompanhariam o equador do planeta.

O problema parecia resolvido até Morbidelli e Gomes decidirem examinar a teoria com mais detalhe. Durante uma visita do italiano ao ON no ano passado, eles se depararam com uma contradição. De acordo com seus cálculos, a mesma influência gravitacional do satélite hipotético, que aos poucos teria tombado Urano, atrairia os demais satélites e anéis de tal forma que impediria que esses acompanhassem o planeta em sua inclinação. A teoria alternativa dos franceses, portanto, não funcionava.

Os pesquisadores, então, decidiram retomar a antiga ideia de uma colisão primordial, mas com algumas modificações. Realizaram simulações detalhadas das interações gravitacionais que teriam ocorrido se um corpo do tamanho da Terra tivesse se chocado contra Urano em sua

infância, quando suas luas e anéis ainda não tinham se formado a partir de um disco de gás e poeira ao seu redor. O impacto teria deitado Urano e os detritos da colisão teriam formado um segundo disco ao redor de seu equador. A influência gravitacional desse disco mais interno teria feito com que o material do primeiro disco se espalhasse na forma de uma "rosquinha", tecnicamente denominada toro, ao redor do equador de Urano. Com o tempo, o disco interno teria sido absorvido pelo planeta e o toro se achatado na forma de outro disco, a partir do qual se originaram as luas e anéis em torno do eixo inclinado.

O cenário descrito consegue explicar o eixo tombado de Urano às mil maravilhas, exceto por um pequeno detalhe: as luas formadas nas simulações giravam no sentido horário enquanto a rotação real de Urano é no anti-horário. Para que o resultado final do modelo computacional fizesse sentido com a realidade do Sistema Solar, os pesquisadores descobriram que Urano deveria ter sofrido outra colisão com mais um embrião planetário. Esse choque deveria ter ocorrido antes daquele, que teria entortado tanto o eixo do planeta como o disco, que deu origem a suas luas e anéis. "Se realmente aconteceram duas colisões dessa ordem, deveria haver muitos embriões planetários do tamanho da Terra perto de Urano naquela época", diz Gomes.

"É uma ideia interessante e inteiramente provável", comenta o astrofísico brasileiro Wladimir Lyra, do Museu Americano de História Natural, em Nova York, especialista no processo de formação de planetas. “Os avanços nessa área de pesquisa mostram, mais e mais, que o Sistema Solar era um lugar bem caótico em seus primórdios. Houve muita interação entre os protoplanetas, de modo que os oito planetas que vemos hoje são apenas os "vencedores" de uma luta que ganharam à custa de algumas cicatrizes."


Extraído de artigo de Igor Zolnerkevic para a Revista FAPESP.
Rodney Gomes é Pesquisador Titular do Grupo de Pesquisas em Astronomia do
Observatório Nacional.







 

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