31 de jan. de 2011

A essência da realidade física

Folha de São Paulo - 23/01/2011

MARCELO GLEISER

Não há dúvida, a mecânica quântica tem mistérios. Mas é bom lembrar que ela é uma construção da mente humana.
VIVEMOS NUM mundo quântico.

Talvez não seja óbvio, mas sob nossa experiência do real -contínua e ordenada- existe uma outra realidade, que obedece a regras bem diferentes. A questão é, então, como conectar as duas, isto é, como começar falando de coisas que sequer são "coisas" -no sentido de que não têm extensão espacial, como uma cadeira ou um carro- e chegar em cadeiras e carros.

Costumo usar a imagem da "praia vista à distância" para ilustrar a transição da realidade quântica até nosso dia a dia: de longe, a praia parece contínua. Mas de perto, vemos sua descontinuidade, a granularidade da areia. A imagem funciona até pegarmos um grão de areia. Não vemos sua essência quântica, porque cada grão é composto de trilhões de bilhões de átomos. Com esses números, um grão é um objeto "comum", ou "clássico".

Portanto, não enxergamos o que ocorre na essência da realidade física. Temos apenas nossos experimentos, e eles nos dão uma imagem incompleta do que ocorre.

A mecânica quântica (MQ) revolve em torno do Princípio de Incerteza (PI). Na prática, o PI impõe uma limitação fundamental no quanto podemos saber sobre as partículas que compõem o mundo. Isso não significa que a MQ é imprecisa; pelo contrário, é a teoria mais precisa que há, explicando resultados de experimentos ao nível atômico e sendo responsável pela tecnologia digital que define a sociedade moderna.

O problema com a MQ não é com o que sabemos sobre ela, mas com o que não sabemos. E, como muitos fenômenos quânticos desafiam nossa intuição, há uma certa tensão entre os físicos a respeito da sua interpretação. A MQ estabelece uma relação entre o observador e o que é observado que não existe no dia a dia. Uma mesa é uma mesa, independentemente de olharmos para ela. No mundo quântico, não podemos afirmar que um elétron existe até que um detector interaja com ele e determine sua energia ou posição.

Como definimos a realidade pelo que existe, a MQ parece determinar que o artefato que detecta é responsável por definir a realidade. E como ele é construído por nós, é a mente humana que determina a realidade.

Vemos aqui duas consequências disso. Primeiro, que a mente passa a ocupar uma posição central na concepção do real. Segundo, como o que medimos vem em termos de informação adquirida, informação passa a ser o arcabouço do que chamamos de realidade. Vários cientistas, sérios e menos sérios, veem aqui uma espécie de teleologia: se existimos num cosmo que foi capaz de gerar a mente humana, talvez o cosmo tenha por objetivo criar essas mentes: em outras palavras, o cosmo vira uma espécie de deus!

Temos que tomar muito cuidado com esse tipo de consideração. Primeiro, porque em praticamente toda a sua existência (13,7 bilhões de anos), não havia qualquer mente no cosmo. E, mesmo sem elas, as coisas progrediram perfeitamente. Segundo, porque a vida, especialmente a inteligente, é rara. Terceiro, porque a informação decorre do uso da razão para decodificar as propriedades da matéria. Atribuir a ela uma existência anterior à matéria, a meu ver, não faz sentido. Não há dúvida de que a MQ tem os seus mistérios.

Mas é bom lembrar que ela é uma construção da mente humana.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

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