24 de jan. de 2011

O instinto assassino (revisitado)

São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2011

MARCELO GLEISER


Se o medo é responsável pelo impulso assassino, o primeiro passo é a criação de meios para aliviá-lo.


Volto hoje à questão levantada na semana passada, sobre o "instinto assassino". Argumentei, então, que a espécie humana tem muito trabalho pela frente até atingir um patamar que podemos chamar de altamente civilizado. Chamei nossa propensão a matar nossos semelhantes de "instinto assassino". Ponderando essa denominação e conversando com colegas e leitores, acredito que um melhor termo seja "impulso" assassino.

De fato, "instinto" é associado a um padrão de comportamento inato, responsável por certos estímulos que são inerentes à criatura e não aprendidos. De alguma forma, devido ao processo de seleção natural, esses instintos fazem parte do código de comportamento do animal. Vemos tartarugas bebês, assim que saem dos ovos, irem em direção ao oceano, vemos os incríveis rituais de sedução dos pássaros, vemos a construção de ninhos.

Predadores matam para sobreviver. Nenhum animal mata por matar. As exceções existem, mas são poucas. A razão é simples: matar requer muita energia. Basta ver a exaustão de um leopardo após perseguir uma gazela na estepe africana. Imagino que adorariam um rifle para evitar aquela correria toda. Mas acho improvável que matariam sem ter fome.

Os humanos são a exceção. Claro, também matamos para nos alimenta. Mas, sendo animais evoluídos, nós também matamos por diversas outras razões.

Matamos por sermos manipulados ou coagidos, como tantos em ditaduras brutais afirmam ("mate ou morra"), matamos por um senso de dever patriótico ou em nome da tribo ("tribo" aqui representa muitas possibilidades, de grupos religiosos a gangues), matamos para roubar o dinheiro de alguém ou até por "amor". Matamos, também, por sermos influenciados a tal ponto por ideologias que aqueles com valores diferentes são inimigos que devem ser eliminados.

Será que o ódio é uma emoção puramente humana? Mesmo que existam exemplos de animais que ajam com algo que se parece com ódio, somos os campeões. E por que isso?

Criamos e realizamos obras belíssimas, somos capazes de atos de profunda caridade e altruísmo. Porém, prisioneiros de uma prisão dialética, somos também seres capazes de assassinatos horrendos, cometidos sem qualquer remorso.

Se existe algo em comum no impulso assassino é que, em muitos casos, os que matam sentem-se ameaçados: por poderes que fogem ao seu controle, por ideologias que exploram sua vulnerabilidade, por provocadores que abusam de sua dignidade, por serem forçados a matar para integrar a "tribo". Até mesmo os psicopatas podem ter seus surtos alimentados por causas como essas.

Se o medo é, em grande parte, responsável pelo impulso assassino, o primeiro passo a dar é a criação de meios para aliviá-lo. Não existe uma solução simples, dado que as causas são tão diversas. No mínimo, devemos criar condições sociais para que as pessoas possam viver com dignidade, com menos medo. Buda, Jesus e Gandhi tinham uma mensagem que, em um ponto crucial, era a mesma: respeitem-se uns aos outros, tenham compaixão.

A manipulação de muitos por alguns com o objetivo de criar grupos ancorados no ódio e no medo só nos fará afundar ainda mais na nossa já profunda vergonha coletiva.

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